Uma série de pesquisas inovadoras e um debate expõem em profundidade o processo pouco compreendido de financeirização da Saúde brasileira. Como ela avançou? De que modo apropria-se do SUS? Quais as alternativas?

O que é a financeirização da Saúde? Como ela avança, no mundo e no Brasil? Um conjunto de trabalhos publicados nos Cadernos de Saúde Pública – edição 38, volume 2 – busca expor este processo, que se relaciona com a privatização, mas é mais profundo. Onde antes havia empresas médicas e associações filantrópicas, ocupando espaços abertos pelos vazios assistenciais do SUS, surgiu um novo cenário. Mega-grupos corporativos , sem rosto – porque compostos em grande parte por fundos que administram riquezas de bilionários e de “investidores institucionais” – veem a medicina privada como um negócio a mais em seu “portfólio” de aplicações. Querem estabelecer o reino da saúde-mercadoria, mas para isso apropriam-se dos recursos do SUS e do Estado brasileiro. Alguns dos pesquisadores que coordenam as pesquisas recém-relatadas falaram a respeito numa edição do ciclo de debates do programa Saúde Amanhã, conduzida por José Noronha, e comentada pela economista Sulamis Dain (UERJ).

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Lígia Bahia (UFRJ) Mário Scheffer (USP) Mário Dal Poz (UERJ) Cláudia Travassos (Fiocruz), analisaram seis setores da saúde privada: hospitais, escolas médicas, farmácias, empresas de diagnóstico e terapia, planos de saúde e Organizações Sociais de Saúde (OSSs). Sua metodologia incluiu a criação de um banco de dados pioneiro. Nos seis setores examinados, selecionaram-se as dez empresas e três redes com maior faturamento. E analisaram-se seus impactos na saúde brasileira.

Lígia listou algumas das observações centrais do processo de financeirização das últimas décadas: a saúde privada agigantou-se. As empresas nasceram pequenas e descapitalizadas, mas tornaram-se mais fortes, fundiram-se em grupos maiores e conseguiram atrair investimento mesmo em momentos de crise financeira. A maior concentração de capital está entre os planos de saúde. Cláudia Travassos apontou, por sua vez, algumas características do processo de financeirização da saúde brasileira: a formação de oligopólios; a diversificação e expansão de outras áreas – como a Educação privada; o crescimento dos hospitais filantrópicos ligados à aliança Proadi (como o Hospital Albert Einstein e o Sírio-Libanês); e um foco das empresas no mercado de consumidores de alta renda.

A pesquisadora compara a situação com os Estados Unidos, país que parece ser modelo para a saúde-mercadoria brasileira: quanto mais aumenta o poder de mercado de algumas empresas, mais crescem os gastos dos norte-americanos – o que causa grande estratificação social e larga diferenciação entre a saúde pública e a privada. “Em uma ponta, encontra-se a elite que pode pagar; na outra, uma oferta de serviços de má qualidade e desatualizados.” Esse modelo reflete-se na visão brasileira de que o SUS deve ser um sistema para os pobres.

Mario Dal Poz aprofundou a discussão expondo a questão do ensino privado de saúde. Sua pesquisa acompanhou a privatização das escolas médicas nos últimos anos. É um processo global, segundo ele, que na América Latina acontece com mais intensidade no Brasil, Chile e Colômbia. Desde o começo dos anos 1960 a criação de novos cursos de medicina privados se dá com muito mais intensidade do que a de escolas públicas – e estão mais concentradas na região sudeste. Entre 2000 e 2018, período que a pesquisa compreende, o número da oferta de vagas saltou 321%. E por quê? O pesquisador observou a mesma tendência de concentração de oferta em grandes grupos educacionais, com fundos de investimento entre seus acionistas.

Mário Scheffer resumiu a importância desse conjunto de pesquisas inovadoras que apresentam um retrato do setor privado. “Entender a dinâmica do mercado de saúde é fundamental para compreendermos o funcionamento e os rumos do sistema de saúde no Brasil”, reflete ele. “Já há algum tempo”, continua, “vínhamos registrando esse movimento de formação de grandes grupos econômicos por meio de fusões e aquisições, abertura de capital, maior volume de financiamento, empréstimos, crédito privado e público – mesmo para setores que não atendem o SUS”.

Os pesquisadores expuseram, no conjunto de suas falas, uma preocupação central: qual o impacto desse processo no sistema público de Saúde? Scheffer ofereceu alguns números: apenas as 20 maiores empresas de diferentes setores faturam, juntas, mais de 120 bilhões de reais por ano – pouco menos que o orçamento do ministério da Saúde para 2023, estimado em R$ 146,4 bi. Não foi sempre assim, alertou o pesquisador, e é preciso atentar ao fato de que esse crescimento só aconteceu ancorado pelo SUS. “Ele não é mais visto como ameaça, mas como oportunidade”, alertou. Como aconteceu na pandemia, quando o sistema único sustentou e garantiu um mínimo de segurança sanitária, e as empresas de planos de saúde lucraram como nunca…

O debate teve as considerações preciosas de Sulamis, que iniciou sua fala reforçando a ideia de Scheffer de que o Estado “continua absolutamente decisivo para manter e subsidiar o setor privado, dando ossatura a esses novos grupos através de renúncia de arrecadação, créditos, aporte de recursos fiscais diretos e subsídios”. A economista elogiou o esforço conceitual, metodológico e de pesquisa dos cientistas, que oferece um outro olhar sobre a desigualdade na Saúde brasileira.

Sulamis vê uma saída, uma “peça essencial para ruptura e transformação desse cenário”: o Complexo Econômico-Industrial de Saúde, que só poderá existir com a garantia de um SUS fortalecido, que seja o centro do processo de transformação. Ela se apoia na observação de que o velho neoliberalismo está em xeque, em especial após a pandemia, com o rompimento dos paradigmas da política fiscal tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, que mostraram que o gasto social é essencial para conter crises. Sulamis se envergonha ao constatar que, no Brasil, em plena campanha eleitoral, ainda se debate “teto de gastos”… 
Para superar essa fase, a professora resgata o pensamento da pensadora italiana Mariana Mazzucato e sua “economia das missões sociais”. Segundo ela, é preciso que haja grandes objetivos de transformação para que a sociedade se articule e se mobilize para a mudança – que só virá com forte investimento do Estado em projetos sustentáveis e inovadores. Sulamis acredita que é o momento de a Saúde se alinhar a um novo propósito que seja refundador da saúde pública e do Estado brasileiro. Esse novo propósito pode ser o Complexo Econômico-Industrial de Saúde.

 

Por Gabriela Leite - editora, designer e produtora audivisual de Outras Palavras

Fonte: outraspalavras.net

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