Desde os anos 1980, o arcabouço fiscal é capturado por lógicas neoliberais. Não contribui ao desenvolvimento tampouco inclui de forma efetiva os novos negócios da era digital. Resultado: impostos regressivos e extorsivos ao “andar de baixo”

Uma visão sistêmica a respeito da complexidade política e econômica da sociedade brasileira permite abrir espaços mais favoráveis e adequados ao debate e à constituição de uma nova estrutura tributária, compatível com os desafios do presente em relação ao futuro da nação. Em pleno início da terceira década do século 21, constata-se o quanto o atual arcabouço fiscal formatado pelo domínio neoliberal desde o final da década de 1980 se tornou o exemplo de tributos às avessas.

Em síntese, um modelo de tributação que se distanciou muito, inclusive, da perspectiva liberal, conforme havia destacado Tomas Hobbes (Leviatã, 1651) ao sustentar que o imposto seria mais leve individualmente quando suportado por todos, bem como Adam Smith (Riqueza das Nações: investigações sobre a sua natureza e suas causas, 1776) ao indicar que o imposto deveria ser pago sobre a renda, o lucro e os salários na proporção das condições de equidade de cada um.

A tributação que age contra o sistema produtivo e o povo, especialmente contra os segmentos de menor rendimento, resultou da sucessão de medidas governamentais realizadas sob a orientação do neoliberalismo. Dois aspectos fundamentais disso podem ser brevemente destacados aqui.

O primeiro se refere à crescente incompatibilidade da estrutura tributária com a base econômica atualmente decorrente do avanço do processo de especialização produtiva iniciado há mais de três décadas. Até os anos 1980, por exemplo, o modelo de tributação era relativamente compatível com a estrutura produtiva industrial, complexa, diversificada e articulada nacionalmente que havia sido constituída durante meio século de vigência do ciclo nacional desenvolvimentista.

Nesse sentido, a trajetória tributária convergia com a ampliação do financiamento do fundo público e estava cada vez mais concentrada na organização da produção manufatureira de bens e serviços. Mas, a partir dos anos 1990, com o ingresso passivo e subordinado na globalização conduzido pelo receituário neoliberal, a estrutura tributária passou a destoar da base produtiva cada vez mais especializada no rentismo, tanto financeiro como no uso da terra e dos recursos naturais. O modelo de tributação aprofundou o seu caráter regressivo e extorsivo, especialmente nos setores econômicos tradicionais e crescentemente mais atrasados tecnológica e produtivamente ao mesmo tempo em que desonerou os segmentos mais dinâmicos (financeiro e de exportação).

O segundo aspecto dos tributos às avessas no Brasil decorre da inflexão de classe social a que foi submetida a cobrança de impostos, taxas e contribuições, fundamentalmente com o alívio fiscal favorável aos ricos, poderosos e privilegiados. Isso porque as mudanças tributárias impulsionadas pela ideologia neoliberal nos anos 1990 promoveram o rebaixamento da alíquota máxima do Imposto de Renda, a desoneração de exportadores de bens primários, a isenção de lucros e dividendos e o aumento dos subsídios ao andar de cima da sociedade.

Em função disso, a elevação da carga tributária em torno de 10 pontos percentuais do Produto Interno Bruto (PIB) entre os anos 1990 e 2022 transcorreu assentada proporcionalmente mais na arrecadação sobre os segmentos dos rendimentos intermediários e empobrecidos. A classe e a fração de classe social dos proprietários terminaram sendo profundamente favorecidas.

Mesmo as novas atividades econômicas e modelos de negócios próprios da Era Digital, como a monetização das redes sociais, aplicativos e plataformas digitais, avançaram sem inclusão plena e efetiva no modelo atual de tributação. Com o passar do tempo, as distorções das “reformas pró-ricos” impulsionadas pelo receituário neoliberal foram se tornando cada vez mais evidentes, operando contra os brasileiros que produzem e trabalham.

Diferentemente disso, percebe-se que durante a trajetória tributária do ciclo nacional desenvolvimentista, pré-neoliberal, portanto, quando prevaleceu a transição do antigo e longevo agrarismo para a moderna sociedade urbana e industrial, houve certo esforço de incorporar os princípios de progressividade na cobrança de impostos, taxas e contribuições. Da revisão aduaneira estabelecida no início da década de 1930 à Constituição Federal de 1988, o país registrou significativos progressos na administração fazendária, com importantes revisões nas formas de arrecadação e tributação direta (imposto sobre a renda) e indireta (impostos sobre consumo).

Apesar dos avanços na conexão atualizada do sistema tributário com as mudanças na estrutura produtiva, o fundo público cresceu entre os anos 1930 e 1980 ainda dependente da regressividade arrecadatória. No período recente, a cobrança dos impostos no andar de baixo da sociedade cresceu, aprofundada pelo forte impacto da desindustrialização sobre a base produtiva, tendo a composição tributária assumido a oposição ao desenvolvimento com inclusão social.

 

Por Marcio Pochmann - Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

Fonte: outraspalavras.net/

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