No país onde mais morrem enfermeiros no mundo, Mônica Calazans, 1ª vacinada, é retrato da categoria: mulheres (85%) e negras (53%). Enfrentam o esgotamento, salários baixos e falta de equipamentos. Sequer têm piso salarial…

Após 10 meses de pandemia no país, da estressante experiência de enfrentamento do aumento de casos e de internações por covid-19 e da cruel e irreparável perda de milhares de vidas, a escolha da enfermeira Mônica Calazans para ser a primeira cidadã brasileira a ser vacinada, está sendo motivo de comemoração, especialmente entre os profissionais de enfermagem.

A escolha foi precisa, Mônica representa simbolicamente as trabalhadoras2 da enfermagem, auxiliares, técnicas e enfermeiras, que compõem 53% da força de trabalho do sistema de saúde e produzem cerca de 60% das ações desenvolvidas. Essas categorias são majoritariamente compostas por mulheres (85%), e metade (53%) é negra.

Mônica é uma mulher negra, de 54 anos, que trabalhou no nível médio da enfermagem por 26 anos e graduou-se aos 47 anos. Superou diversas dificuldades, como a baixa remuneração de profissionais de nível médio, que têm menor autonomia no trabalho; a tripla carga de trabalho – graduação, trabalho e família — e ingressar no mercado de trabalho como enfermeira. Além disso, a homenageada, que faz parte de grupo de risco, atua em unidade de terapia intensiva de referência para tratamento da covid-19. Por que essa trabalhadora não foi remanejada para área de menor risco?

O reconhecimento simbólico, embora merecido, não imprime mudanças nas condições de trabalho da enfermagem.

Apesar de décadas de reivindicações, a enfermagem não tem piso salarial e a categoria é mal remunerada. O salário médio é de dois salários mínimos para auxiliares, três para técnicas e quatro para enfermeiras. Porém, o salário inicial de enfermeiras contratadas temporariamente para atuar na pandemia é ainda menor, o que determina a inserção em mais de um vínculo trabalhista, para compor a renda salarial.

Dados do Conselho Federal de Enfermagem de 20 de janeiro de 2021 mostram inaceitáveis estatísticas, que resultam das condições de trabalho e vida de profissionais de enfermagem no país. No Brasil, a enfermagem é a categoria que mais adoeceu e morreu por covid-19 entre os profissionais da saúde, com proporcionalidade de óbitos que acompanha a distribuição quantitativa das profissionais na área; ou seja, maior número de óbitos entre auxiliares e técnicas do que entre enfermeiras. Desde o início da pandemia, o estado de São Paulo responde pelo maior número de mortes (86), com taxa de letalidade de 2,84%, maior do que a taxa de letalidade média entre trabalhadores de enfermagem no país, que é de 1,96%. O Brasil, com 525 mortes desde o início da pandemia, responde por um terço do total das mortes de profissionais de enfermagem do mundo.

A vacina contra a covid-19 promete minimizar o sofrimento e o número de mortes, mas se a vacina já existe, a vacinação só é possível com o trabalho da equipe de enfermagem, que atua desde o planejamento até a aplicação do imunobiológico. A perspectiva promissora trazida pela proteção da vacina encontra trabalhadoras de enfermagem exaustas e adoecidas, física e mentalmente, pela luta já travada até aqui, tanto na Atenção Básica como na especializada e nos hospitais. É amedrontadora a expectativa de iniciar uma campanha dessa magnitude sem condições adequadas, no que se refere ao dimensionamento dos profissionais, à provisão de equipamentos de proteção individual e coletiva e à segurança dessas trabalhadoras.

Desde o início da implementação do Programa Nacional de Imunização no Brasil, há pelo menos 46 anos, o trabalho da enfermagem brasileira é o que viabiliza as ações de imunização para milhões de brasileiros de diversas gerações. É possível antever que o crônico subdimensionamento da enfermagem e as difíceis condições de trabalho serão agravados, pelo não planejamento de contratação de mais profissionais e de locais adequados, que garantam a biossegurança de profissionais e de usuários, e a segurança física das trabalhadoras envolvidas na campanha.

As Unidades Básicas de Saúde (UBSs) são responsáveis por ações essenciais dos vários programas ministeriais para a Atenção Básica, como pré-natal, monitoramento do crescimento e desenvolvimento infantil, cuidados a indivíduos com doenças crônicas e atendimento da demanda espontânea, além da vacinação de rotina e da vigilância em saúde. A pandemia de covid-19 multiplicou as demandas para as UBSs, agregando às ações de vigilância em saúde o diagnóstico e o acompanhamento dos casos de covid-19. Solicitações da gestão central, que devem ser respondidas prontamente, por vezes de impacto epidemiológico questionável e que colocam profissionais em situações de risco, tornam o trabalho ainda mais desgastante. Dessa forma, a campanha de vacinação contra a covid-19 encontrará as UBSs operando para além da capacidade dos serviços e as trabalhadoras esgotadas.

A escolha de uma enfermeira para tomar a primeira dose da vacina contra covid-19 no Brasil tem a aparência de reconhecimento do valor do trabalho da enfermagem. No entanto, esse ato simbólico não se efetiva em melhorias nas condições de trabalho, avanços na implementação de direitos sociais e na urgente discussão sobre políticas de valorização salarial para a enfermagem, o que concretamente efetivaria o reconhecimento do valor desse trabalho.

A recorrente associação de trabalhadores de saúde com heróis, durante a pandemia, é outra manifestação de reconhecimento simbólico. Esse recurso ideológico serve para intensificar a responsabilização dos próprios trabalhadores por suas condições de trabalho, acarretando a interiorização da pressão e ampliando os desgastes aos quais já estão submetidos3.

 

Por Iara de Oliveira LopesAlva Helena de AlmeidaCássia Soares BaldiniCelia Sivalli CamposDébora Del GuerraLivia Bezerra RodriguesMarina PeduzziNatália Caroline Pecin Gonçalves1

 

1 As autoras são integrantes do Coletivo pelo Fortalecimento da Enfermagem e do SUS

2 Adotamos o gênero feminino neste texto uma vez que a enfermagem é majoritariamente constituída por mulheres.

3 Carta Em defesa das Trabalhadoras de Enfermagem do SUS – para assinar acesse: https://forms.gle/wh3p3NTttnZf1rFU8

 

FONTE:https://outraspalavras.net/

.