As ideias nazifascistas foram tão poderosas, tão influentes e causaram tantos traumas e desastres no século XX que até hoje impactam fortemente as atuais correntes de extrema-direita, sendo que uma de suas vertentes comanda de novo a maior potência imperialista do planeta, os EUA, sob a liderança de Donald Trump.
Porém, a justa preocupação com o rigor teórico torna pertinente a pergunta: é correto denominar o que existe de mais importante na extrema-direita moderna de fascista?
Não se pode, evidentemente, colocar todo o movimento conservador e de direita no balaio do fascismo. Esse equívoco levaria os antifascistas a cometerem erros táticos, como o de não saber explorar as contradições que podem enfraquecer e isolar o inimigo, afastando-o de possíveis aliados pontuais.
No entanto, é vital compreender corretamente o que se está enfrentando, pois do contrário corre-se o risco de adotar medidas insuficientes.
E o que é o fascismo? Permanece espantosamente válida a essência da definição do fascismo, formulada pelo Movimento Comunista Internacional e particularmente por Georgi Dimitrov em seu famoso informe apresentado ao 7º Congresso da Internacional Comunista em 1935 e que foi assim resumida no Pequeno Dicionário Filosófico (M. Rosental e P. Iudin) editado pelo Estado soviético: “O fascismo é a forma mais reacionária e abertamente terrorista da ditadura do capital financeiro, instaurada pela burguesia imperialista com o fim de esmagar a resistência dos trabalhadores e de todos os elementos progressistas da sociedade. A ascensão do fascismo é a prova de que a burguesia já não consegue impor seus interesses por meios rotineiros da democracia burguesa normal”.
Para o marxista brasileiro Leandro Konder, em seu livro Introdução ao Fascismo (escrito em 1977), algumas das principais características do fascismo seriam: anticomunismo, liderança carismática, autoritarismo, militarismo, chauvinismo, propaganda massiva, irracionalismo e uso da violência como método político.
Já segundo o grego Nicos Poulantzas, o fascismo tem como aspecto definidor a existência de uma base de massa politicamente mobilizada, diferente de outras expressões autoritárias como as ditaduras militares, que contam com apoio de massa ocasional ou de ditaduras bonapartistas, também dependentes de um líder carismáticoe que igualmente possuem base de massa, mas sem se converter em força social organizada.
Mesmo levando-se em conta as mais notórias definições de fascismo, é quase impossível separar do fascismo movimentos que em nossa época se declarem como de extrema-direita, pois encontraremos inevitavelmente, em sua plataforma e/ou em sua prática, alguns dos elementos essenciais do fascismo, quando não, todos eles, com exceção do antissemitismo, presentemente residual entre os fascistas, até pelo motivo de que Israel tornou-se uma das capitais mundiais da extrema-direita.
Desta forma, é um esforço inócuo, do ponto de vista político, tentar separar o que existe de mais significativo da atual extrema-direita do fascismo do Século 21, ou como gostam alguns, do neofascismo. A hodierna extrema-direita e o fascismo são, na melhor das hipóteses, irmãos siameses, ligados pelo cérebro e pelo coração, ambos frutos do ventre da mesma “cadela” (1): o capitalismo em sua etapa imperialista.
O que enfrentamos neste momento, encarnado pela liderança de Donald Trump, é o fascismo do século 21. Um fascismo que não ousa dizer seu nome, mas fascismo, mesmo assim, pois reúne todos os atributos essenciais que encontramos no fascismo clássico, conforme veremos nesta série de três artigos.
Esperar que o fascismo de hoje seja igual em todos os aspectos ao fascismo, digamos, original, revela um pensamento esquemático já denunciado por Lênin: “o fenômeno é sempre mais rico do que a lei (…) e, por isto, a lei, qualquer lei, é limitada, incompleta, aproximativa” (2).
Vamos nos apoiar em um pouco de história para entender a evolução, em linhas bem gerais, deste fenômeno, até os dias de hoje.
O Fascismo de ontem
O termo “fascista” ganha relevância em 1919, quando Benito Mussolini cria suas milícias armadas, os “Fasci Italiani di Combattimento”, junção de dois outros grupos que desde 1915 referiam-se a si próprios como “fascistas”. Os Fasci Italiani di Combattimento deram origem ao Partido Nacional Fascista que em 1922 toma o poder.
Fascio (cujo plural é fasci) significa feixe, remetendo ao fascio littorio – antigo símbolo de poder do Império Romano (ver figura ao lado) e tal simbolismo fazia parte da mitologia criada por Mussolini de fazer a Itália reviver a grandeza da Roma Antiga.
Mussolini era um antigo militante socialista que muda radicalmente de posição com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, apoiando entusiasticamente a participação da Itália no confronto e assumindo uma virulenta posição antimarxista e cada vez mais chauvinista e reacionária.
Fascismo, o anticomunismo e a necessidade do mito
Os “pais fundadores” do fascismo, Mussolini e Hitler, definiram claramente qual era a vocação germinal do fascismo: a luta contra o comunismo.
Mussolini dizia que o anticomunismo era a alma do fascismo, mas não considerava isso suficiente. Para mobilizar as massas era preciso, dizia, cinicamente, criar um mito: “Negar o bolchevismo é necessário, mas alguma coisa deve ser afirmada. Criamos o nosso mito. O mito é uma fé, é uma paixão. Não é preciso que seja uma realidade. […] O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação!”. (3)
O que acontecia na Itália era acompanhado na Alemanha com grande interesse por um cabo austríaco chamado Adolf Hitler, um jovem com mentalidade profundamente preconceituosa e conservadora que a partir de 1921 assumiu a liderança de um partido fundado no ano anterior, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, alcunhado pela sigla NAZI por conta das duas primeiras sílabas da palavra em alemão “Nationalsozialistische”.
Hitler enxergava com um olhar de idolatria Mussolini e a Itália fascista. Era um farol a seguir.
Em 1925 afirma, entusiasmado, no seu livro “Minha Luta”, que “o combate que está realizando a Itália fascista contra as três armas principais do judaísmo (…) A interdição das lojas maçônicas secretas, a perseguição da imprensa internacionalista, assim como o constante combate ao marxismo internacional, por outro lado a constante consolidação da doutrina fascista, habilitarão, no curso dos anos, o Governo italiano a, cada vez mais, poder servir aos interesses do seu povo, sem receio da hidra judaica”.
No marco da grande crise econômica deflagrada em 1929, conhecida como a Queda da Bolsa de Nova Iorque ou “A grande depressão”, o movimento fascista ganha fôlego no mundo todo e Hitler chega ao poder em 1933.
Assim caracterizava Dimitrov o nazismo: “A modalidade mais reacionária do fascismo é o fascismo de tipo alemão. Tem a ousadia de chamar-se nacional-socialismo, apesar de não ter nada em comum com o socialismo. O fascismo hitleriano não é apenas um nacionalismo burguês, é um chauvinismo bestial. É o sistema de governo do banditismo político, um sistema de provocações e torturas contra a classe operária e os elementos revolucionários da massa camponesa, da pequena burguesia e dos intelectuais. É a crueldade e a barbárie medievais, a agressividade desenfreada contra os demais povos e países”. (4)
No caso hitleriano, ao mito mobilizador da grandeza da nação uniu-se o mito da “conspiração judaica”, amplamente difundido pela primeira “fake news” produzida em escala industrial: o livro “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, que alegadamente revelavam os planos judaicos de dominação mundial. A diferença em relação a Mussolini é que Hitler realmente acreditava em seus mitos.
O antissemitismo dos nazistas era muito mais virulento do que o da Itália fascista, que só adotou leis antijudaicas 16 anos depois que Mussolini chegou ao poder, mesmo assim por certa pressão alemã. Mas fora algumas poucas nuances (como essa citada), Hitler tinha quase tudo em comum com o ideário do fascismo italiano: a noção do espaço vital (spazio vitale em italiano e lebensraum em alemão) para justificar a invasão de países soberanos; além do ferrenho anticomunismo. O marxismo é, para Hitler, a “arma” do judaísmo:
“Sobre o cérebro e a alma da gente de bem, vai descendo, aos poucos, como um pesadelo, o temor do judaísmo, a arma dos marxistas” (Minha Luta).
Só é possível o renascimento da Alemanha extirpando o marxismo:
“Invencíveis, no entanto, parecem os milhões que se opõem ao levantamento nacional por convicções políticas, invencíveis enquanto não se combaterem as suas ideias marxistas, arrancando-as de seus corações e de seus cérebros” (Minha Luta).
Então por que razão a cor vermelha na bandeira nazi? O próprio Hitler responde, com invulgar cinismo (o cinismo, aliás, é uma das características atemporais do fascismo):
“A cor vermelha de nossos cartazes foi por nós escolhida, após reflexão exata e profunda, com o fito de excitar a Esquerda, de revoltá-la e induzi-la a frequentar nossas assembleias; isso tudo nem que fosse só para nos permitir entrar em contato e falar com essa gente” (Minha Luta).
Isso revela, por tabela, o porquê da palavra “socialismo” no nome de seu partido, o que fica nítido em outro trecho do mesmo livro:
“Só a cor vermelha dos nossos cartazes fazia com que eles afluíssem às nossas salas de reunião. A burguesia mostrava-se horrorizada por nós termos também recorrido à cor vermelha dos bolchevistas, suspeitando, atrás disso, alguma atitude ambígua. Os espíritos nacionalistas da Alemanha cochichavam uns aos outros a mesma suspeita, de que, no fundo, não éramos senão uma espécie de marxistas, talvez simplesmente mascarados marxistas ou, melhor, socialistas (…) Quantas boas gargalhadas demos à custa desses idiotas e poltrões” (Minha Luta).
A “missão histórica” do fascismo: derrotar o comunismo
Revelando mais uma vez a gênese de sua ideologia, Hitler, ainda em 1925, vaticina a derrota do bolchevismo, dizendo que a Alemanha “lança a vista para as terras do Leste”:
“O próprio destino parece querer nos indicar a direção. O destino, ao abandonar a Rússia ao bolchevismo, roubou ao povo russo a classe educada que criara e garantira a sua existência como Estado. A organização de um Estado russo não foi o resultado da capacidade política do eslavismo na Rússia, e sim um maravilhoso exemplo da eficiência, como criadores de Estados, dos elementos germânicos no seio de uma raça inferior” (Minha Luta).
Ou seja, os comunistas, ao expulsarem “a classe educada” do poder, expurgaram o que havia de “elementos germânicos” na Rússia, tornando-a presa fácil.
Exatamente 20 anos depois da publicação do “Minha Luta”, em abril de 1945, o líder nazista, então confinado em seu bunker, com o Exército Vermelho da “raça inferior” ocupando quase toda Berlim, desabafava com correligionários, lamentando não ter concretizado uma aliança com a Inglaterra, pois tal aliança lhe permitiria perseguir totalmente “o objetivo da minha vida e a razão para a ascensão do nacional-socialismo: o extermínio do bolchevismo” (5).
O fascismo é o imperialismo sem máscara
Outros pontos em comum entre Mussolini e Hitler: a ascensão de ambos ao poder contou com poderosos movimentos de massa e com o entusiástico apoio e financiamento das elites econômicas e políticas da Itália, da Alemanha e de outras partes do mundo. O nazismo, por exemplo, despertou o entusiasmo do magnata Henry Ford que tornou-se um dos financiadores do partido nazi, tendo sido condecorado pelo governo alemão com a Ordem de Mérito da Águia Alemã em 30 de julho de 1938.

No que tange à política internacional, o fascismo inovou em relação a outras formas de expansionismo.
Os europeus buscavam justificar o colonialismo como uma expedição para converter os pagãos ao cristianismo e civilizar os selvagens. O Destino Manifesto, que é a ideologia da expansão estadunidense pelas Américas, dizia mais ou menos a mesma coisa: que os americanos, legítimos anglo-saxões, estavam destinados por Deus a civilizar o Continente. O fascismo, por outro lado, praticamente prescindiu de justificativas legitimadoras globais. A invasão de territórios até então pertencentes a povos livres justificava-se tão somente pelos interesses particulares da Itália e da Alemanha em ter seus “spazio vitale” e “lebensraum”, ponto.
Isso é assim definido por um dos mais famosos historiadores do nazismo, Joachim Fest, um conservador da velha cepa:
“O que fez de Hitler um fenômeno novo na história remonta ao fato de ele nunca ter tido qualquer noção civilizacional. As potências mundiais conquistadoras, da Roma antiga, passando pelo Sacro Império Romano-Germânico, à França de Napoleão ou ao Império Britânico sempre reclamaram para si, por mais tênue que tenha sido, a promessa de paz, progresso e liberdade para a humanidade, Hitler, pelo contrário, abriu mão de qualquer ornamentação em sua conquista e expansão de poder, considerando-a desnecessária até mesmo para uma encenação”. (6)
Donald Trump, recentemente, ameaçou de uma só vez a soberania de três países aliados: do Panamá ele quer tomar o Canal e da Dinamarca ele quer a Groelândia. Quando ao Canadá, Trump quer o Canadá inteiro. O magnata americano tampouco fez qualquer encenação, apresentando como justificativa para a anexação, singelamente, segundo suas palavras: “precisamos deles para a nossa segurança econômica”.
Mas antes de voltarmos a Donald Trump, vamos falar um pouco, na segunda parte do artigo, da evolução que nos trouxe a este novo surto fascista.
Por Wevergton Brito - jornalista e vice-presidente do Cebrapaz.
Fonte: Cebrapaz
Notas:
1 – Refiro-me à última fala da peça de Berthold Brecht, “A Resistível Ascensão de Arturo Ui”, uma alegoria sobre a ascensão de Hitler escrita em 1941: “Embora o mundo tenha se levantado e parado o bastardo, a cadela que o deu à luz está no cio novamente”.
2 – Materialismo e Empiriocriticismo (1909), Lênin.
3 – Opera Omnia (Coletânea de textos de Mussolini), vol. XVIII, p. 457, citado por Leandro Konder em Introdução ao fascismo.
4 – Georgi Dimitrov – Informe apresentado ao 7º Congresso da Internacional Comunista (1935)
5 – Joachim Fest – No Bunker de Hitler
6 – Joachim Fest – No Bunker de Hitler