O Fascismo de Hoje
O fascismo do Século 21 levou muito tempo em maturação e sua gestação começou assim que, em 1945, o fascismo do século passado sofreu uma derrota política, ideológica e histórica desmoralizante.
Os epítetos “fascista”, “nazista” ou “nazifascista”, antes ostentados com orgulho, transformaram-se em um opróbrio.
Mesmo os direitistas mais brutais passaram a renegar o fascismo, que virou sinônimo de crime.
A URSS e o Movimento Comunista, que foram os mais importantes atores do combate antifascista, saíram muito fortalecidos politicamente da derrota nazifascista.
Para mitigar esta ameaçadora influência, o imperialismo reagiu em vários campos. No campo ideológico, encontrou toda a forma de tergiversação para ocultar que o fascismo era um fenômeno capitalista, apoiado por capitalistas. A Teoria do Totalitarismo, de Hana Arendt foi, nesse sentido, um valioso apoio para a burguesia.
Porém, a conveniente teoria de Hana Arendt não dava cabo de explicar por que então a “democracia ocidental”, supostamente antitotalitária, apoiou até os seus estertores as duas ditaduras fascistas remanescentes na Europa: a de Franco na Espanha e a de Salazar em Portugal (ambas sobreviveram, graças a esse apoio, durantes três décadas depois da queda do 3º Reich).
Isso para não falar do apoio ao regime do Apartheid na África do Sul, do macartismo, da organização e financiamento dos golpes militares no Brasil, Argentina, Uruguai etc., entre tantos outros exemplos, dos quais cito apenas mais um.
Na Indonésia, um expurgo anticomunista promovido pelo exército com apoio da CIA matou em 1965, segundo estimativas amplamente aceitas, nada menos do que 1 milhão de pessoas. Isso mesmo que você leu: 1 milhão de pessoas. O massacre instalou no poder o general Hadji Mohamed Suharto, que comandaria o país de forma ditatorial, com amplo respaldo estadunidense, de 1967 a 1998.
A verdade é que as ideias fascistas subjacentes, de uma forma ou de outra, jamais deixaram de ser um instrumento a serviço do imperialismo.
Neoliberalismo e poder unipolar dos EUA: o mundo do desencanto
O final da década de 1980 e início da década de 1990 marca o desmantelamento da URSS e do campo socialista no Leste Europeu. Foi a época do triunfo temporário dos ideais burgueses. Antes disso, a burguesia já fazia avançados experimentos do neoliberalismo, imposição agressiva do capital no sentido de destruir qualquer controle social que criasse obstáculos à exploração desenfreada e à especulação em nível planetário. Um dos mais importantes teóricos do neoliberalismo, Wilhelm Röpke, defendia explicitamente a necessidade de um determinando nível de autoritarismo para vencer a resistência popular ao neoliberalismo: “É possível que minha opinião sobre um ‘Estado forte’ (um governo que governa) seja ainda ‘mais fascista’, porque eu realmente gostaria de ver todas as decisões de política econômica concentradas nas mãos de um Estado vigoroso e totalmente independente e não fragilizado pelas forças pluralistas de natureza corporativista (…) As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também uma democracia presidencial, autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum – uma democracia ditatorial” (1).
O término da disputa entre o campo socialista, liderado pela URSS, e o campo capitalista, liderado pelos EUA, com a emergência do poder unipolar deste último, mudou radicalmente as condições de luta política, em desfavor dos trabalhadores.
A imposição à escala global do neoliberalismo foi uma expressão poderosa da vitória ideológica da burguesia. A partir de então, em termos de representação social, no máximo aceitar-se-ia conviver com organizações temáticas e atomizadas que desempenhassem um papel passivo e subalterno (ONGs e afins) em pautas que não significassem ameaça ao status quo. Projetos coletivos de emancipação seriam coisas do passado.
Ocorre que, mais de 30 anos depois da dissolução da URSS, a democracia burguesa está amplamente desmoralizada. Como isso aconteceu? Ora, as duas principais promessas feitas pós-muro de Berlim jamais foram cumpridas. Quais eram essas promessas?
1ª – Um mundo de paz
– Com o fim da URSS e do campo socialista, um mundo de paz e de resolução pacífica das controvérsias, tendo como base a Carta das Nações Unidas, seria instaurado, vaticinavam. A destruição da Iugoslávia, da Líbia, a invasão do Iraque, do Afeganistão, os ataques à Síria etc., rapidamente desmoralizaram esta ilusão.
2ª – Um mundo de prosperidade econômica
– Com a globalização neoliberal o progresso econômico e social estaria ao alcance de todos, afirmavam. Ao contrário disso, houve, nos países capitalistas, o aumento extremo da concentração de riqueza e o surgimento, mesmo em nações centrais do imperialismo, de fenômenos ligados à fome e à miséria (mendicância, pessoas sem-teto etc.). Em 2015 um estudo do Economic Policy Institute, dos EUA, constatou que o poder de compra dos trabalhadores americanos estava praticamente estagnado desde 1978. O texto de apresentação do relatório afirmava: “A estagnação salarial da grande maioria dos trabalhadores não foi causada por tendências econômicas abstratas. Pelo contrário, os salários foram suprimidos por escolhas políticas feitas em favor daqueles que possuem mais renda, riqueza e poder” (2). Nos EUA e na Europa, as novas gerações têm muita dificuldade de manter o padrão de vida do qual desfrutavam os seus pais, o que altera com particular força o ânimo das camadas médias, lembrando a advertência de Umberto Eco: “Uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política” (3). O trabalho se precarizou e desvalorizou. A mobilidade social ficou acentuadamente reduzida e os estudos, inclusive de economistas não marxistas, como os do francês Thomas Piketty, evidenciam a tendência à formação de uma oligarquia financeira mundial.
Por outro lado, em especial na Europa, Partidos Comunistas, que durante décadas foram as grandes referências do setor mais combativo do proletariado e eram os canais por onde se expressava a opinião antissistema, diante da derrocada do campo socialista ou se dissolveram, trilhando o caminho da transformação em partidos da ordem, mudando de nome, programa e objetivos, ou preservaram suas identidades, porém em alguns casos com sérias concessões ideológicas e em quase todos os casos sendo fortemente impactados pela derrota do campo socialista, o que resultou em aguda diminuição de influência política, em uma fase de defensiva estratégica do movimento revolucionário.
No campo considerado de esquerda, os partidos social-democratas, alguns que mantiveram inclusive a designação de socialistas, embarcaram com armas e bagagens no ideário neoliberal e atlantista. Em Portugal, França, Itália, para citar apenas alguns exemplos, foi a social-democracia que desmontou boa parte do Estado de bem-estar social, precarizou o trabalho e aderiu cegamente aos desígnios da Otan-EUA.
A desilusão e o descontentamento tomam conta das massas.
Este fenômeno, com nuances e características próprias, se repetiu por todo o planeta, levando parte do proletariado e das camadas médias, sem alternativas viáveis no horizonte, a um sentimento de orfandade política e ideológica, presa fácil da demagogia falsamente antissistema da extrema-direita.
Na Itália, na eleição de 2022, as “Regioni Rosse” (Regiões Vermelhas), tradicional reduto eleitoral dos comunistas do antigo PCI, votaram em peso nos fascistas do partido Fratelli d’Italia (Irmãos de Itália), da atual primeira-ministra Giorgia Meloni. O lema dos “Irmão da Itália” é “Deus, Pátria e Família”, seu símbolo é uma chama tricolor que representa a chama que se ergue do túmulo de Mussolini.
Precisamos aqui explicitar o diferente desenvolvimento político da social-democracia europeia em relação a alguns setores da social-democracia latino-americana no pós segunda-guerra.
Enquanto na Europa os partidos social-democratas passaram a ser, em geral, representantes diretos do capital e do imperialismo, na América Latina muitos partidos desta corrente mantiveram orientações anti-imperialistas e compromissos com pautas avançadas do campo popular, sendo exemplos disso o Partido Socialista de Salvador Allende, no Chile e bem mais tarde, no Brasil, o Partido Democrático Trabalhista, de Brizola e, com mais relevo, o Partido dos Trabalhadores, de Lula.
Esse é um dos fatores que talvez ajude a explicar por que a América Latina se tornou um bastião mundial da resistência ao receituário neoliberal hegemônico a partir dos anos 1990.
No início dos anos 1990 existia apenas um governo de esquerda na América Latina e no Caribe: Cuba. Do México à Argentina, o neoliberalismo triunfava.
No entanto, o projeto neoliberal provocava explosões de descontentamento popular. Por todos os quadrantes da região existiu resistência e luta. Passado o primeiro baque do fim do campo socialista e apesar das mais diversas leituras sobre as causas e significados desse debacle, a esquerda consequente latino-americana, com a presença ativa dos Partidos Comunistas, entendeu a necessidade de encontrar formas amplas de atuação, mostrando capacidade de mobilização e de articulação.
Em 1998, Hugo Chávez vence as eleições presidenciais na Venezuela. Sucessivamente, forças progressistas vencem as eleições no Brasil, no Uruguai, na Argentina, no Chile, na Bolívia, na Nicarágua, no Equador, no Paraguai, em Honduras, em El Salvador.
Políticas públicas foram adotadas para combater a fome e as injustiças sociais.
A integração soberana da América Latina e do Caribe ganha impulso inédito, com a criação ou o fortalecimento de mecanismos como o Mercosul, a Unasul, a Celac e a Alba.
Os EUA, pela primeira vez em quase 100 anos, desde que no início do século 20 consolidaram uma hegemonia continental, não podiam mais tratar a região como o quintal de sempre e tiveram que assistir o continente em peso se aproximar principalmente da China, mas também da Rússia.
O “Fim da História” durou um piscar de olhos
A vitória contra o campo socialista no fim dos anos 1980 tornou o capitalismo convicto de que seu modelo de democracia burguesa estava destinado a ser o padrão obrigatório e eterno. “É o fim da história”, bradou um dos seus ideólogos, Francis Fukuyama. Era tal a confiança, que as ideias e métodos fascistas foram relegados a um segundo plano, como reserva tática. Permitiu-se até, nos países capitalistas mais desenvolvidos, certo avanço em alguns temas da pauta de costumes que não representavam ameaça ao poder de classe da burguesia. Mas essa fase, em termos de tempo histórico, durou apenas um piscar de olhos.
Começa a ganhar força no mundo, com a liderança da República Popular da China e da Federação Russa, um questionamento direto da ordem unipolar estadunidense e a emergência de um mundo multipolar passa a ser uma realidade incontornável. Em 2009, os presidentes de Brasil, Rússia, Índia e China reúnem-se em Moscou e dois anos depois, com adesão da África do Sul, surge o BRICS. Em 2013 a China lança uma nova proposta de globalização econômica: o projeto “Um Cinturão, uma Rota”, igualmente chamado de Nova Rota da Seda. Este projeto confronta a globalização neoliberal, que busca eternizar relações de subserviência, pois é baseada na tese do presidente chinês, Xi Jinping, de “desenvolvimento compartilhado da humanidade”.
Diante de poderosos movimentos geopolíticos que incluindo países da Ásia, da Eurásia e da África começavam a contestar o poder unipolar dos EUA; da resistência antineoliberal da América Latina e da revolta latente dos trabalhadores e das camadas médias na Europa, o arsenal da “reserva tática” fascista volta então a ser acionado, e discursos baseados no anticomunismo, no autoritarismo, no racismo, na misoginia, no irracionalismo, ganham novo impulso.
Na América Latina, da qual falaremos um pouco mais, a experiência dos governos progressistas foi constantemente bombardeada. Existiram tempos de mais estabilidade, mas nunca de trégua.
O que estava escondido nos esgotos começa a emergir, com auxílio do imperialismo e da direita tradicional, que ademais souberam explorar, é forçoso registrar, os limites, os erros e as insuficiências do campo progressista.
A volta da técnica da Grande Mentira e a naturalização do fascismo
Uma leitura atenta do livro no qual Hitler expôs sua profissão de fé, “Minha Luta”, revela que o líder nazista estava decididamente fascinado com o uso da mentira como técnica de manipulação de massas. Segundo Hitler, o uso de uma mentira colossal, absurda, sempre deixaria uma dúvida no público de que, necessariamente deve existir alguma verdade em uma “Grande Mentira”, pois ninguém seria tão louco a ponto de inventar tal disparate se não houvesse uma base real. Usando como pretexto a “denúncia” das “mentiras judaicas e marxistas” Hitler não consegue disfarçar o que era, na verdade, uma proposta de atuação de seu movimento e sua principal técnica de propaganda que ficou conhecida como a técnica da “Grande Mentira” (o negrito é do autor deste artigo):
“(…) na grande mentira sempre há uma certa força de credibilidade; porque as amplas massas de uma nação são sempre mais facilmente corrompidas nas camadas mais profundas de sua natureza emocional (…) e assim, na simplicidade primitiva de suas mentes, eles caem mais facilmente vítimas da grande mentira do que da pequena mentira (…) Nunca entraria em suas cabeças fabricar inverdades colossais, e eles não acreditariam que outros pudessem ter o atrevimento de distorcer a verdade de forma tão infame. Mesmo que os fatos que provam isso possam ser trazidos claramente à sua mente, eles ainda duvidarão e vacilarão e continuarão a pensar que pode haver alguma outra explicação” (Hitler, em Minha Luta).
E de fato, tal método foi aplicado com estrondoso sucesso pelos nazistas, convencendo milhões de alemães de que o comunismo era uma invenção judaica e que a Alemanha perdeu a 1ª Guerra devido à traição de judeus e comunistas.

O jornalista William Shirer, conservador convicto, acompanhou in loco a conquista do poder pelos nazistas e relata, no livro Ascensão e Queda do III Reich (Volume 1):
“Muitas vezes num lar ou escritório alemães, ou algumas vezes em conversações casuais com um estranho num restaurante, numa cervejaria, num café, eu deparei com as mais exóticas afirmativas de pessoas aparentemente educadas e inteligentes. Evidente que repetiam algum trecho absurdo ouvido pelo rádio ou lido nos jornais. Algumas vezes era tentado a dizer certas verdades, mas nessas oportunidades deparava-me com tal olhar de incredulidade, tão chocante silêncio, como se tivesse blasfemado contra o Todo-Poderoso, a tal ponto que compreendia a inutilidade de tentar tomar contato com um espírito que se pervertera e para quem os fatos da vida se haviam transformado naquilo que Hitler e Goebbels, com seu cínico desdém pela verdade, diziam ser”.
O relato de Shirer é chocantemente atual pois está presente na experiência vivida por qualquer antifascista com amigos e familiares partidários do Fascismo do Século 21, seja qual for o país em que atue, com raras exceções. Com certeza Steve Benon (3) e seus acólitos estudaram esta técnica. Com o uso das redes sociais a eficácia da “Grande Mentira” foi potencializada e usada em escala planetária com o indisfarçável beneplácito da mídia hegemônica quando isso lhe era conveniente e, muitas vezes quando deixou de ser conveniente era tarde demais para reparar o estrago. O monstro havia adquirido vida própria.
Milhões de estadunidenses acreditam piamente que Joe Biden é comunista e que os comunistas fraudaram a eleição dos EUA em 2020.
Na última eleição estadunidense vi na TV uma apoiadora de Trump declarar ao repórter que democratas controlam furacões e tornados direcionando-os às áreas onde existem mais eleitores republicanos. Tal versão circulou nas redes antes das eleições e foi “confirmada” por uma deputada trumpista, Marjorie Taylor Greene, “Sim, eles podem controlar o clima“, declarou (leia reportagem em inglês da DW sobre o assunto neste link: https://www.dw.com/en/are-man-made-hurricanes-being-used-to-harm-republican-strongholds/a-70459827).
Talvez nem mesmo Hitler tenha imaginado tal grau de insanidade.
(Continua)
Pro Wevergton Brito - jornalista e vice-presidente do Cebrapaz
Fonte: Cebrapaz
Notas:
1 – Citado por Luiz Gonzaga Belluzzo no artigo “Sobre neoliberalismo e democracia”, que pode ser encontrado no link: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/600869-sobre-neoliberalismo-e-democracia-artigo-de-luiz-gonzaga-belluzzo
2 – Wage Stagnation in Nine Charts, por Lawrence Mishel, Elise Gould e Josh Bivens, o artigo pode ser encontrado (em inglês) no link: https://www.epi.org/publication/charting-wage-stagnation/
3 – Trecho do livro “O Fascismo Eterno (Umberto Eco), 1997.
4 – Steve Bannon é um ideólogo do trumpismo, especialista em uso das redes para a luta política, foi presidente executivo da Breitbart, vice-presidente da operação eleitoral e mineração de dados da Cambridge Analytica e estrategista-chefe da primeira campanha presidencial de Trump.