Articulação de trabalhadores, intelectuais e movimentos sociais propõe caminhos para reconstruir a democracia. Diante da agrura do sobreviver hoje, sugere resgatar horizonte utópico – e que Estado seja mais que “pronto-socorro”.
A interrupção do ciclo político da Nova República ocorreu em 2014, quando uma parte dos partidos que apoiou o candidato derrotado no segundo turno da eleição presidencial do mesmo ano rompeu com o acordo nacional que viabilizou a Constituição de 1988, não aceitando o resultado final das urnas. Nas eleições gerais seguintes não houve questionamento ao resultado das urnas porque foi justamente o bloco de partidos questionador em 2014 que terminou vencendo os pleitos municipais de 2016 e 2020, assim como a eleição presidencial de 2018.
Neste perturbador contexto político nacional emergiu, em 2015, a Projeto Brasil Popular [formado por grupos de trabalho constituídos por trabalhadores, militantes dos movimentos populares, intelectuais e acadêmicos com experiência em gestão de políticas públicas e conhecimento em diversas áreas]. Além disso, continha também o propósito de oferecer fundamentos que permitissem reestruturar uma nova política econômica e social diante da fragmentação social e do aprofundamento da crise do capitalismo no Brasil.
A congregação de mais diversas e amplas forças sociais e políticas progressistas permitiu que continuássemos em defesa da soberania nacional e integração latino-americana, da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das reformas estruturais e populares nos anos que se seguiram, de ascensão da direita e retomada do receituário neoliberal. Para tanto, os últimos cinco anos foram contemplados com estudos e debates em 31 grupos de trabalhos de diferentes saberes (populares, acadêmicos, intelectuais) que se estruturaram em torno dos eixos do Estado democrático com soberania popular, da garantia dos direitos, igualdade e diversidade e do desenvolvimento econômico com igualdade.
De forma inédita para o período recente, o documento “A crise brasileira e o projeto popular para o Brasil”, recém-lançado pela editora Expressão Popular, aponta para uma inversão contundente da usual metodologia de tratamento do Brasil. Ao partir do objetivo de situar a economia como um meio necessário e capaz para materializar os fins políticos da sociedade, terminou por infletir e libertar do aprisionamento imposto ao pensamento único do receituário neoliberal.
O rebaixamento da política atual à condição secundária e subordinada aos interesses dominantes e condicionadores da economia tende a cancelar o futuro dos brasileiros, condicionando-os crescentemente às emergências do curto prazo. O aprisionamento de parcela cada vez maior do povo às agruras da sobrevivência do cotidiano tem sido proposital, pois com isso são corroídas as utopias da mudança, transformando o Estado em mero pronto-socorro do presentismo.
Não foram muitos os autores nacionais que conseguiram retratar a realidade do povo simples como Graciliano Ramos. No romance Vidas Secas, publicado em 1938, o autor descreve o peso das correntes que prendiam os brasileiros às necessidades imediatas da sobrevivência, retratando o círculo de ferro imposto às famílias sertanejas. Inicialmente, mostra a necessidade de mudança frente à aridez do modo secular de vida. Na secura da caatinga, era imposta a sequência de fugas aos retirantes da vida agrária, cujo movimento possível se traduzia na busca de condições mais favoráveis de existência.
A instabilidade gerada pelas enormes restrições econômicas da época recorrentemente impostas ao andar de baixo da sociedade brasileira foi magistralmente apresentada por Jorge Amado no romance Capitães de Areia, publicado em 1937. Na oportunidade, apresenta a descrição da grave questão social que já transbordava do Brasil agrário para o cada vez mais urbano.
A emergência do banditismo social resultaria do próprio meio de exclusão gerado pelas correntes do atendimento das emergências de sobrevivência social ao povo pobre das cidades. Do mesmo modo, Euclides da Cunha tratou magistralmente da dramática situação de vida e trabalho de parcela dos brasileiros na obra Os sertões, publicada em 1902. À margem do capitalismo nascente da época, massas sociais sobrantes compostas por retirantes, desvalidos, esfomeados, empobrecidos e desempregados recorriam ao fanatismo religioso. Diante da recorrente desilusão dos sonhos definida pelas restrições do presentismo, o Estado atuava como pronto-socorro da questão social na forma policial, interessado em manter a ordem, mesmo que sem progresso material, que não fosse aos ricos, poderosos e privilegiados de sempre.
No Brasil de hoje, embora a riqueza nacional esteja estancada há um bom tempo, os bilionários não param de crescer. Convergente com a pobreza, o desemprego, a desigualdade e a fome em extensão, a lista da Forbes identificou 282 bilionários no Brasil em 2022 ante 206 em 2019.
O projeto popular para o Brasil, trazido ao grande público pela articulação Brasil Popular, não se constitui em algo definitivo e completo sobre um novo e possível rumo à nação que se afirme enquanto humanidade na defesa de melhor qualidade de vida para todos. Constitui-se, sim, numa proposta coletiva a todos aqueles que se encontram dispostos a lutar pela construção de um futuro que não seja a repetição da desigualdade e exclusão do presente e do passado.
Por MARCIO POCHMANN - Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.
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