O trabalho infantil é notadamente tido na sociedade contemporânea como um dos maiores e piores males, sendo visto como uma prática abominável, igualado ao trabalho escravo adulto, e ao mesmo tempo, muito mais grave que ele, dado que, viola a ingenuidade e a puberdade.

A sociedade de classes, em todos os tempos, sempre marginalizou aqueles que eram considerados incapazes a produção e consumo de mercadorias, ou a geração de riquezas ao acúmulo do estado e das classes dominantes.

Uma pena constatarmos, que mesmo diante de tanta evolução política, econômica, jurídica, cultural, científica, entre outras, ao longo da história, ainda se admita que a dignidade humana esteja associada a quem pode ou não pode produzir, a quem tem condições ou não de consumir.

Por exemplo, um desempregado, condição de quem está fora do mercado de trabalho e consumo, vive o pior dos desesperos, pois sua aflição não se resume somente a restrição de subsistência, de si, e da família, visto que há também exposição a humilhação e vexame, ultrapassando questões voltadas a necessidades fisiológicas, e atingindo o âmago do Ser, a essência da alma. Estar fora do processo de produção em uma sociedade de classes, leva a um “não existir”, tornando a pessoa socialmente invisível.

Marginalização e abandono criam sentimentos de inutilidade, gerando problemas emocionais e psíquicos, que em situação grave e sem amparo, deforma e desconstrói a dignidade da pessoa humana, dificultando ainda mais, a possibilidade de superação das dificuldades.

A ociosidade em um sistema competitivo é uma espécie de maldição, porque frusta o processo de produção de riquezas, sendo aceita somente as classes sociais superiores, “de onde brota” a iniciativa, o planejamento e o investimento social, logo, se passa por virtude.

É essa visão de ociosidade como um mal, dada a incapacidade produtiva, que colocou crianças, mulheres e idosos, em abandono social no processo histórico. A criança pela ingenuidade, o que a coloca como sem condições de conduzir efetivamente um processo de produção. A mulher, submissa e dependente do homem, foi impelida a condição de auxiliar, de acordo com a “vontade de Deus”, e o idoso, por não mais possuir as forças físicas necessárias ao trabalho, sofreu e sofre o menoscabo.

A própria cultura ocidental cristã, sequestrada pelas forças do mercado, mata o mesmo Cristo que diz acreditar, em flagrante contradição. De um lado, propaga-se através do santo mercado, um tipo de messias e fé que amoleça os corações a fim de aceitarmos naturalmente o destino. De outro lado, persegue-se e elimina na cruz um Messias que ousou resgatar a dignidade dos “improdutivos”, crianças, mulheres, idosos, enfermos e deficientes, contrariando a tal ideia de “destino”.

Esse esforço em descaracterizar o “desocupado” não era exclusividade na distorção da cultura judaico-cristã, estava presente também em em outros povos da antiguidade, como a eliminação dos meninos deficientes que não podiam alçar a condição de guerreiros na Grécia e Babilônia. A desumanização do “ocioso”, portanto, independia e independe da cultura oriental ou ocidental, visto que está atrelada a estrutura da sociedade de classes.

O código babilônico de Hamurabi enxergava a criança ociosa (impúbere) como um produtor em gestação (formação), sendo propriedade do pai, “quem o sequestrar, será morto” (art. 14).  Não se tratava de uma humanização da criança em sua dignidade de ser humano, mas da defesa de um meio de produção futuro (mãos para o trabalho), logo, propriedade.

Possamos perceber que também em nosso tempo, uma criança ganha elevada importância social, se souber operar um celular ou computador, onde estão as condições atuais necessárias a formação produtora-consumidora (domínio tecnológico). É como se a tecnologia sinalizasse de que ali, se trata de alguém que poderá superar a ociosidade, semelhante aos filhos que na antiguidade ajudavam o pai na lavoura, ou que eram, aprendizes de ofícios, sendo considerado virtude. Na religiosidade cristã oriental e ocidental, aquele que está acima dos homens, o menino Deus, é descrito como aprendiz de carpinteiro, embora, em sua vida adulta, se revele mais como um agricultor, logo, não ocioso. Todavia, sua compaixão e defesa aos ociosos, o conduziu a condenação e morte.

Essa ideia do trabalho como gerador de riquezas, sem o qual, não existe virtude, e nem sequer dignidade, está, portanto, enraizado na cultura universal até os nossos dias, e constantemente, crianças são obrigadas ao trabalho doméstico, fabril e rural. O que seria para colaboração e aprendizado, se naturalizou como responsabilidade, matando o direito a infância, e muitas vezes, com o incentivo dos próprios pais.

Com o advento da revolução industrial e a mecanização, mulheres e crianças puderam ser inseridas no processo de produção, um tipo de mão de obra, que anteriormente era sem valor para o mercado. Marx relatou essa novidade em O Capital: O emprego das máquinas torna supérflua a força muscular e torna-se meio de emprego para operários sem força muscular, ou com um desenvolvimento físico não pleno, mas com uma grande flexibilidade.

A marginalização passou a ter foco voltado ao desemprego ou desocupação, independente de idade, tendo a Inglaterra da revolução industrial, adotado o critério de que qualquer criança que atingisse 1,30 metros de altura, era considerada adulta, estando apta a produção fabril.  

Ainda estamos longe de escapar a esse mal do trabalho infantil, na medida em que a competição produtiva se intensifica, e muitas sociedades, ou famílias vulneráveis, se submetem a essa prática.

No Brasil, que teve um fim tardio da escravidão, e um desenvolvimento capitalista dependente e subalterno, a situação tornou-se comovente, com repetições tão cruéis como da primeira revolução industrial na Inglaterra. É assim que o jornal A Província de São Paulo descreveu as condições sanitárias em 01 de dezembro de 1889:

Nenhum conforto tem o proletário nesta opulenta e formosa capital. Os bairros em que mais se concentram, por serem os que contêm maior número de fábricas são os do Brás e do Bom Retiro. As casas são infectas, as ruas, na quase totalidade, não são calçadas, há falta de água para os mais necessários misteres, escassez de luz e de esgotos. O mesmo se dá em Água Branca, Lapa, Ipiranga, São Caetano e outros pontos um pouco afastados.

Um inquérito de 1901 em São Paulo relata a presença de menores nas unidades fabris:

É considerável o número de menores, a contar de cinco anos, que se ocupam em serviços fabris, percebendo salários que começam por duzentos réis diários.

A grande e importante greve de 1917 trazia como reivindicação central em sua pauta, o fim do trabalho noturno de mulheres e menores de 18 anos (Jornal Estado de São Paulo 12/07/1917).

O mesmo jornal (O Estado de São Paulo) trouxe no dia 05 de setembro de 2017, uma denúncia sobre maus tratos a menores em duas empresas na Mooca, embora tenha omitido o nome das firmas e dos empresários. Informava o artigo que se tratava de cerca de 60 menores, com idades de 12 a 14 anos, em jornada noturna, com entrada as 19 horas, e saída as 6 horas do dia seguinte, com apenas 20 minutos de intervalo a meia-noite. Também fazia referência a violência sofrida pelos menores, como espancamento e puxões de orelhas. O texto foi transcrito no jornal anarquista, O Combate.

Em 1930 o jornal A Classe Operária trouxe uma informação importante acerca da característica dos trabalhadores em São Paulo: Os trabalhadores em São Paulo, são em grande quantidade estrangeiros ou naturalizados; há especialmente nos têxteis, um grande número de mulheres e de menores (25/11/30).

O próprio empresário brasileiro, Jorge Street, muito reconhecido na história industrial nacional, fez referência a essa dura realidade em uma palestra em 1934 no Instituto de Engenharia, confirmando que essa prática estava incorporada à nossa cultura político-econômica:

Se entre nós o trabalhador nunca teve, depois da primeira grande lei social da libertação dos escravos, uma vida que se pudesse nem de longe, chamar de trágica, tal qual nos mostram os inquéritos e as publicações da Europa industrial, havia entre nós, no entanto, incontestavelmente, abusos e injustiças contra crianças, mulheres e, mesmo, operários homens, no que fiz respeito a idade de admissão, do horário e do salário, principalmente. E sabeis que falo de experiência própria, porque durante mais de 35 anos dirigi fábricas com milhares de operários e sei bem o que vos digo. Confesso que trabalhei com crianças de 10 ou 12 anos e talvez menos, porque nesses casos, os próprios pais enganavam. O homem normal era de 10 horas e, quando necessário, de 11 ou 12 horas. O que vos dizer das mulheres grávidas que trabalhavam até a véspera, que vos dizer? Até quase a hora de nascer o filho. Não preciso explicar os exemplos, cito estes unicamente para mostrar que o problema existia.

Parece coisa do passado, mas não é, o IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2019), apontou que quase 1,8 milhão de crianças entre 5 e 17 anos, vivem em situação de trabalho infantil, não confundir com aprendizagem. Dos 14 aos 17 anos de idade, são 78,7% do total, e de 5 a 13 anos, 21,3%. Os meninos representam 66,4% do total e as meninas, 33,6%.

Segundo o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, 66% das vítimas do trabalho infantil no Brasil, são negros e pardos. O próprio presidente atual, Jair Bolsonaro, apoia o trabalho infantil, se manifestando publicamente: “Deixa a molecada trabalhar”. Ele ignora os próprios dados de governo, onde, segundo o Ministério da Saúde, de 2007 a 2018, ocorreram 43.777 acidentes com menores de 5 a 17 anos em exercício de trabalho infantil, e pior, 261 perderam a vida. Triste, mas não se trata de uma realidade exclusivamente brasileira.

No mundo (2020), quase 160 milhões de crianças entre 5 e 17 anos, estavam submetidas ao trabalho infantil, 10 milhões delas em situação escandalosa de escravidão, os dados pertencem ao relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Há 3,8 milhões de crianças em trabalho infantil na Europa e América do Norte; 26,3 milhões na Ásia (sul e central); 10,1 milhões no Norte da África e Ásia ocidental; 24,3 milhões na Ásia Oriental e Sudeste asiático; 86,6 milhões na África Subsaariana e 8,2 milhões na América Latina e Caribe.

O combate ao trabalho infantil precisa de medidas enérgicas, no Brasil e no mundo, e os organismos internacionais podem e devem jogar um peso mais significativo nessa questão, porém, está claro, que uma nova relação econômica mundial precisa ser estabelecida. A economia deve ser direcionada para servir a humanidade, e não o contrário, como temos vivido. Inaceitável que com os avanços que presenciamos ao longo do processo histórico, e em todos os campos, se presencie ainda uma realidade tão cruel e desumana, que sequestra a alegria da infância, tira o direito a educação, e compromete o desenvolvimento das potencialidades humanas. O trabalho infantil, não é outra coisa, senão escravidão, logo, assassinato. Possamos nos dedicar com forte ímpeto a essa luta, visando transformar essa triste realidade.

 

Por Bernardino de Jesus Brito – Diretor do CES

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